Raiva

 
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Esta forma letal de encefalite transmitida por mordeduras de animais, sobretudo cães, é temida desde a Antiguidade. Já o Código Sumério (século XIX a.C.) estipulava penas para o dono de um cão raivoso que transmitisse a doença. A raiva ocorre hoje em quase todo o mundo, exceto certos países insulares (p.ex., Grã Bretanha, Japão, Nova Zelândia) onde rígidas medidas de controle tornaram possível eliminar o vírus.

Epidemiologicamente há duas formas, a raiva urbana, transmitida por carnívoros domésticos (cão e gato), e a raiva silvestre, em que o vírus é mantido entre mamíferos selvagens como o lobo e a raposa. Na América do Sul, morcegos hematófagos propagam a infecção ao gado. Seres humanos podem ser infectados por animais domésticos ou selvagens. Excepcionalmente, descreve-se a infecção por via respiratória (presumivelmente por meio de terminações do nervo olfatório) em visitantes de cavernas infestadas por morcegos, e em recebedores de transplantes de córnea.

Etiologia e patogênese. O vírus rábico, um Lyssavirus da família Rhabdoviridae, é um dos maiores vírus (150 x 100 nm), em forma de bala de revólver, constituído por uma única cadeia de RNA e nucleocápside proteica.

Após a introdução na pele, o vírus multiplica-se em fibras musculares e, eventualmente, penetra em terminações nervosas sensitivas. Uma vez dentro dos axônios, os vírus são transportados aos gânglios sensitivos e daí ao SNC.

O período de incubação da raiva é um dos mais variáveis entre as doenças transmissíveis, indo de cerca de 10 dias a mais de um ano, mas geralmente entre um e dois meses. Tem relação com o inóculo (isto é. a quantidade de vírus introduzida), a resistência individual e o local da mordedura.

Mordeduras nas mãos e face são mais graves e o período de incubação mais curto, devido à alta concentração de terminais sensitivos nestas regiões. Admite-se que o tempo de incubação depende do tempo de proliferação local do vírus, porque, após penetrar nos axônios, a chegada no SNC é relativamente rápida (3 a 5 dias).

Por meio dos gânglios e raízes sensitivas, o vírus atinge a medula espinal, o tronco cerebral (sede das principais manifestações clínicas) e propaga-se centrifugamente a terminações sensitivas na córnea, folículos pilosos , glândulas salivares (de onde é excretado na saliva) e às vísceras, inclusive o coração, onde causa miocardite. A excreção salivar do vírus ocorre no cão já alguns dias antes dos primeiros sintomas.

Quadro clínico. As manifestações da raiva no homem se iniciam por um período prodrômico ou melancólico, durando 1 a 4 dias e caracterizado por febre, mal estar, cefaléia, dores musculares, fadiga, anorexia, náuseas e vômitos. Há alterações do comportamento, predominando tristeza, depressão, insônia, sono agitado, desinteresse pelo ambiente e exacerbação de sentimentos afetivos. De grande valor diagnóstico são as parestesias (dor, formigamento, queimação) na área da mordedura, que irradiam ao longo dos nervos e são referidas por 50 a 80% das vítimas (possivelmente são devidas a lesão viral nos gânglios sensitivos). Há também lacrimejamento, salivação e sudorese, atribuídos a estimulação do sistema nervoso autônomo.

O período de excitação, encefalítico ou de estado corresponde à raiva furiosa do cão, mas no ser humano não costuma haver fúria ou agressividade.
Caracteriza-se por hiperexcitabilidade sensitiva, motora e psíquica.

  • Do lado psíquico, há intensa agitação, irritabilidade, alucinações, pensamentos e comportamentos aberrantes, entremeados com períodos lúcidos.
  • Há hipersensibilidade a qualquer estímulo, visual, auditivo, olfatório ou táctil, a que o paciente freqüentemente reage com espasmos e convulsões. Essas crises são denominadas acesso rábico. P.ex., um simples deslocamento de ar (trânsito de pessoas, abertura de portas) torna-se insuportável, chamando-se esta manifestação de aerofobia. Bater palmas ou luz forte podem desencadear convulsões.
  • Há também importantes disfunções autonômicas como midríase, lacrimejamento, salivação em excesso e hipotensão postural. A temperatura pode ultrapassar 40ºC.
  • Sinais de disfunção do tronco cerebral incluem diplopia, paralisia facial e das cordas vocais. A tentativa de deglutir produz espasmos extremamente dolorosos da laringe, que chegam a ocorrer à simples apresentação de um copo com água. Isto se chama hidrofobia, um termo às vezes usado como sinônimo de raiva.
  • O envolvimento do centro respiratório causa distúrbios do ritmo da respiração, associados ou não a espasmos do diafragma e músculos torácicos. Muitas vezes, a morte em apnéia se segue a um tal episódio. Em poucos dias, há diminuição progressiva da consciência até o coma e a morte, em média 4 dias (no máximo 20 dias) após o início do quadro.


Na chamada raiva paralítica ou tranquila, observada em certos casos, o curso difere do anterior, sendo marcado por paralisia ascendente, semelhante à da síndrome de Landry-Guillain-Barré. É mais comum em pacientes infectados por morcegos, e/ou que tenham recebido imunoprofilaxia incompleta. Há paraplegia flácida, perda do controle esfincteriano, coma progressivo e óbito. Para todos efeitos práticos, deve-se considerar a raiva invariavelmente fatal uma vez iniciados os sintomas.

Anatomia Patológica

O exame macroscópico do cérebro pode mostrar edema e hiperemia difusos, mas as alterações às vezes são surpreendentemente discretas, em contraste com o quadro clínico grave.

Ao exame microscópico, as alterações inflamatórias predominam no tronco cerebral, medula espinal e gânglios sensitivos, notando-se infiltrado linfocitário perivascular, nódulos gliais, necrose de neurônios e neuronofagia.

Porém a alteração patognômica da raiva é o corpúsculo de Negri, uma inclusão viral citoplasmática encontrada em neurônios, principalmente do hipocampo (em células piramidais) e do cerebelo (em células de Purkinje). É um corpúsculo ovalado, eosinófilo, geralmente menor que uma hemácia. Em imunofluorescência e microscopia eletrônica demonstrou-se ser constituído de vírus rábicos completos margeando um centro de proteínas virais.

Curiosamente, nas regiões onde os corpúsculos de Negri são mais encontrados (hipocampo e cerebelo) as alterações inflamatórias são discretas ou ausentes. Por isto, é importante que o exame histopatológico do cérebro inclua, além destes, fragmentos de tronco cerebral ou medula espinal, para pesquisa de infiltrado inflamatório.

Os corpúsculos de Negri não são encontrados em todos os casos. São maiores e mais numerosos em pacientes com sobrevida maior (mais que 5 dias) e raros ou ausentes com menos de 48 horas. Em cerca de 20% dos casos não é possível achá-los. A sensibilidade do exame pode ser aumentada usando anticorpos antirábicos conjugados com fluoresceína. Na raiva não há inclusões virais intranucleares.

Outros meios diagnósticos são o isolamento do vírus a partir da saliva ou de fragmento de cérebro, por inoculação intracerebral em ratos. É exame sensível e confiável mas demorado e caro. Pode-se também tentar a demonstração de antígenos virais por imunofluorescência em esfregaços de córnea ou biópsia de pele.


 
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